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Sobre o artista

"Sua pintura sempre se iluminou do expressionismo, liberando o gesto com ímpeto e fazendo vibrar a cor e a matéria. Em experiência mais recente, a técnica surge dominada; sobre áreas espaçosas a cor se dilui e enfatiza as formas dos objetos situados num clima de revivescência do passado. Para além da nostalgia e da preservação de valores, há a atenção para as coisas integradas no ambiente. Pinta diretamente, como o modelo presente (geralmente a natureza e os interiores), mas não se preocupa como os impressionistas, com a qualidade da luz. Antes inventa uma luz artificial com que substituir a natural, quando a hora avança e o quadro pede mais trabalho. Pintura de acento dramático pousada sobre motivos singelos, temas de paixão sobre paisagens indomadas. Confirmação de um excelente artista".

 

Walmir Ayala

 

AYALA, Walmir. O Brasil por seus artistas = Brazil through its artists. trad. Tradução de John Stephen Morris, Ida Cecília Raiche de Araújo e Zuleika Santos Andrade. Rio de Janeiro: Nórdica; São Paulo: Círculo do Livro, s.d.

"Na pintura de JOÃO CARNEIRO DA CUNHA quem não sente logo uma urgência intimidade de taquígrafo, na largueza gestual do toque de pincel dele e nas cores densas e luminosas que ele acende ali? No recorte palpitante das formas e das superfícies pelas quais se encaminha, essa pintura recupera, transporta a “vida silenciosa” dos modelos que lhe serviram de ponto de partida. Caligrafia transfiguradora da paisagem e do retrato, o artista nela trata de reescrever, com idêntico ímpeto sensual, tanto de interiores às vezes desertos, às vezes habitados por esplêndidas nudezas, quanto arranjos de objetos e frutos largados sobre aquela mesa; panorama de cidades ou esboços de figura, pátios de fazenda ou guindastes de porto, estudos de vegetação e vistas de praias desertas são resolvidos nesse gesto urgente que é cor e forma profundamente. Em qualquer dessas imagens a intensidade cromática do registro trata de captar certa escrita visual incandescente; mas o que poderia haver de ênfase indiscreta no texto é desbastado pelo esforço de precisão lírica, gráfica e pictórica ao mesmo tempo, que aí tem lugar. Assim a retomada mais para o matissiano, mas não só o matissiano desse neo-fauvismo – que me parece secretamente saudoso da intimidade só na aparência apaziguada dos Vuillards – revela-se de todo indiferente à cronologia dos manuais, já que procede mesmo de inevitável determinação íntima. Mesmo porque o reencontro com o signo-mesmo da paixão de pintar celebrada de maneira sempre mais livre JOÃO CARNEIRO DA CUNHA em cada uma das telas executadas por ele nestes últimos doze anos pelo aprendizado áspero de um mestre exigente e sarcástico como JOSÉ CLAUDIO; foi esse que, no Recife, soube fazer ver ao moço paulista em férias genealógicas a fronteira entre veleidade e profissionalismo. A pintura tornou-se afinal escolha e a escrita plástica embebida de cor que o artista ainda todo perplexidade conseguiu liberar do subsolo de si mesmo fez com que, no meio do seu caminho, cada pincelada dos quadros dele pareça pulsar como coisa viva. Já é alguma coisa."          

 

Alexandre Eulalio, Maio 1985

Alguns indivíduos da população parece já virem ao mundo crismados. O tempo e o ambiente somente os atingem de raspão. Cedo elegem seus guias e com eles permanecem, trazendo-os para um presente perene, transformando-os em fonte de inesgotável prazer. João é um desses santos – na acepção primitiva da palavra santo, isto é, separado, e que nada tem a ver com alienado (muito pelo contrário: os acontecimentos do mundo nele encontram eco e a sua pintura é tímpano sensível mas, isto sim, dotado de um filtro de modo a só chegarem até suas telas aquelas notas essenciais à linguagem do pintor). Conheci-o na escolinha do MAM, alunos que éramos, com Savério, com Scarinci, Dorothy Bastos, Isa Leal Ferreira, do gravador Lívio Abramo, e apesar de eu morar em Pernambuco e ele em São Paulo, não nos separamos mais, nestes últimos vinte e cinco anos. A originalidade – parece-nos dizer – é algo muito pessoal e profundo, não tem nada a ver com arreganhos de superfície. Inútil procurar em seus quadros evidência dos vestígios das modas artísticas e mesmo as desgraças que afligem este embananado fim de século não conseguem embananar a sua pintura. Vivendo numa “área aberta” – na classificação de Marta Traba - , em que o artista é presa fácil de tudo que é influência, João, espontaneamente, até sem se dar conta (mesmo porque tal classificação é recente) é um caso pouco frequente de resistente. A sua arte não é feita para brilhar um momento e sim para o tempo sem-fim ou para o tempo-nenhum, ou um tempo redondo em que o antes ou depois não faz nenhum sentido. A sua arte se impõe pela fidelidade a si mesma, pelo entusiasmo com que o pintor fala do seu mundo sem jamais e importar com o que se diga ou, pior, o que não se diga a respeito. Mas se quisermos falar de influência direta, assinalo, acima de quaisquer pintores, o ambiente familiar. Foi em sua casa, ou melhor, de seus pais, que folheei pela primeira vez, com vagar, os álbuns de Corot, Coubert, Cézanne e os impressionistas. Havia ali um clima parecido com o das recordações de Raíssa Maritain em “As Grandes Amizades”. Falava-se de Bernanos – a quem seu pai, Pedro Octávio, era profundamente ligado – e Marcier, como na casa de Raíssa, de Léon Bloy e Rouault, justamente quando a arte em São Paulo primava pela competição da novidade a todo custo (como hoje prima pela disputa de mercado). Exatamente aí em São Paulo, nessa Las Vegas das artes, fui encontrar essa ilha de conforto espiritual em que se olhavam as artes e a literatura não como uma nova marca de refrigerante mas de maneira superior, como coisa permanente e limpa de vulgaridade e imediatismos.

 

José Claudio, Setembro 1980

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